Café da manhã: quem precisa dele?
Em seu dia a dia, a médica Flavia Cicuttini, professora de reumatologia da Universidade Monash, na Austrália, cuida de muita gente com artrose, problema marcado por desgaste e dor nas articulações. Sabe-se que o quadro é crônico e nutre relação íntima com o ganho de peso. Logo, evitar ou eliminar os quilos a mais é uma das medidas mais importantes para controlar o suplício das juntas. “Com o passar dos anos, fiquei impressionada com o número de pacientes que buscavam ajuda para emagrecer e eram aconselhados a tomar café da manhã“, conta Flavia. “Alguns deles se sentiam obrigados a fazer essa refeição, mesmo sem vontade alguma”, completa. Foi aí que surgiu uma pulga atrás da orelha da especialista: o desjejum seria, assim, tão indispensável?
Segundo a médica, a fama dessa refeição é respaldada por vários estudos observacionais, desses que seguem as pessoas e seus hábitos por um tempo. Muitos apontam que quem adere ao café da manhã tende a ser mais magro. “Só que podem existir outras diferenças entre esses indivíduos e aqueles que pulam a refeição”, pondera Flavia. “Talvez eles tenham um padrão de alimentação mais saudável como um todo”, exemplifica.
Para tirar a história a limpo, ela e um time de colegas resolveram revisar tudo que a ciência diz a respeito. E focaram nas pesquisas que minimizavam o efeito de outros fatores do estilo de vida no peso — afinal, o foco era o café da manhã. Chegaram, então, a 13 estudos.
“Descobrimos que quem comia de manhã costumava ingerir 260 calorias extras por dia e ganhava, em média, 0,44 quilo”, revela. E sabe aquele papo de que colocar algo no estômago logo cedo aceleraria o metabolismo? Não encontraram vestígios disso.
Na revisão, também faltaram provas de que os adeptos do desjejum se tornam menos propensos a episódios de gula mais tarde — algo que ajudou a abrilhantar a reputação do café da manhã e sedimentar seu pretenso título de refeição mais importante do dia.
Por que o café da manhã não seria obrigatório
Para a médica australiana, o conjunto de evidências indica que não há por que encorajar toda a população, sem exceção, a incluir o café da manhã na rotina com o intuito de driblar o ganho de peso e derrotar a obesidade. “Agora, se o indivíduo gosta desse hábito, tudo bem. Está claro que algumas pessoas sentem necessidade de comer de manhã e outras não”, afirma.
A nutricionista Pamela Vitória Salerno, colaboradora da Associação Brasileira de Nutrição, concorda: “Se não há apetite nesse momento e as demais refeições são equilibradas, não faz sentido forçar o café da manhã”.
Porém, a profissional brasileira, assim como outros experts ouvidos para a reportagem, tem ponderações em relação aos achados da revisão. O primeiro ponto diz respeito ao déficit de qualidade dos estudos incluídos na compilação — algo reconhecido pelos próprios autores no artigo, publicado no The British Medical Journal. Alguns se baseiam em registros alimentares feitos pelos voluntários durante sete dias, período considerado curto demais.
Fora isso, a maior parte dos dados vem de países desenvolvidos, como Estados Unidos e Reino Unido. Segundo a nutricionista Luciana Rossi, professora da Universidade Anhembi Morumbi, na capital paulista, o café da manhã nesses locais é bastante diferente do nosso. “É possível que ele não propicie saciedade, o que elevaria a ingestão de calorias mais tarde”, raciocina.
Luciana vai além: “O aumento de 0,4 quilo detectado pela revisão é algo ínfimo”. Para ela, essa é uma variação normal de balança, que pode ocorrer em um mesmo dia — ir ao banheiro (ou ficar travado) e ingerir mais (ou menos) águainfluenciam nessa flutuação, por exemplo.
A bióloga Ana Bonassa, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, frisa ainda que não dá para perder de vista a existência de outros tantos estudos que vão na direção oposta. “Eles indicam que pular o café está relacionado ao sobrepeso, à obesidade e à maior incidência de diabetes tipo 2″, lista.
Ignorar a primeira refeição do dia não deixa de ser a continuação de um jejum iniciado na hora em que vamos dormir. E, de acordo com Ana, que estudou o impacto do hábito em animais, há indícios de que o pior momento para ficar de estômago vazio seria justamente após acordar. “Nossa fase ativa é de dia”, ensina.
Se for para escolher, ela afirma que compensa mais pegar leve à noite, quando o organismo está se preparando para repousar. Por falar nisso, a nutricionista Pamela nota que a falta de fome cedinho talvez seja até reflexo de um jantar pra lá de pesado. “Essa refeição pode acabar compensando e até multiplicando as calorias que seriam ofertadas de manhã”, avisa.
Embora a revisão australiana não tenha identificado sinais desse comportamento em quem não faz questão do café, trata-se de um risco apontado pelos especialistas. “Há tendência de consumir mais alimentos nas refeições seguintes e também de realizar as escolhas com base na fome”, afirma a nutricionista Fabiana Pastich, professora da Universidade Federal de Pernambuco. E todo mundo sabe o que acontece quando o olho é maior do que a boca…